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A VIOLÊNCIA SIMBÓLICA DE GÊNERO E
A LEI “ANTIBAIXARIA” NA BAHIA<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]-->
Cecilia
M. B. Sardenberg
OBSERVE-
Observatório de Monitoramento da Lei Maria da Penha
NEIM/UFBA
A polêmica atual instaurada em torno da constitucionalidade do Projeto de
Lei no. 19.137/2011 (apelidada de lei “Antibaixaria”) da Deputada Estadual
Luiza Maia da Bahia, que dispõe sobre a não contratação, com verbas públicas,
de artistas que degradem a imagem das mulheres, me faz voltar pouco mais de vinte
anos no tempo, mais precisamente aos fins dos anos 1980, quando da elaboração
da Constituição do Estado da Bahia. Naquela
época, nós, feministas atuantes no Fórum de Mulheres de Salvador, nos reunimos
várias vezes para discutir a inclusão de um capítulo específico sobre os
direitos das mulheres na nova carta magna
baiana.
Inspiradas pelos avanços conquistados por nós na Constituição Federal de
1988 com a mobilização de mulheres, em todo país, e, em especial, pelo chamado “Lobby do Batom” – o lobby exercido diretamente junto aos deputados e deputadas
constituintes -- ousamos ir além formulando uma proposta ainda mais progressista
para a Bahia. Dentre outras questões de interesse
das mulheres, incluímos nessa proposta disposições sobre a prevenção da
violência contra as mulheres e a obrigatoriedade de criação de delegacias
especiais de atendimento às vítimas em cidades com mais de 50.000 habitantes, a
proibição da exigência por parte de empregadores de comprovantes de
esterilização das trabalhadoras, a criação de comissões especiais para monitorar
as pesquisas no campo da reprodução humana, e – de interesse especial para o
momento -- o impedimento da veiculação de mensagens que aviltassem a imagem das
mulheres.
Nossa ousadia se revelava, tanto no teor dessas propostas, quanto no fato
de que, para defendê-las na Constituinte Estadual, contávamos apenas com a
Deputada Amabília Almeida, a única mulher então exercendo mandato naquela casa.
Mas, nesse ponto, não havia o que temer.
Com muita diplomacia, a nossa querida Amabília, companheira de muitas batalhas,
conquistou mais aquela, logrando transformar nossas propostas em princípios e leis
sagradas na Constituição Estadual de 1989. Foi assim que a Bahia passou a ter
uma das constituições mais avançadas do país no tocante aos direitos das
mulheres.
Frente
à citada polêmica em torno do Projeto de Lei da Deputada Luíza Maia, destaco
aqui, em especial, o Art. 282 da Constituição Estadual, particularmente o
inciso I, em que se afirma que o Estado da
Bahia “garantirá, perante a sociedade, a imagem social da mulher como mãe,
trabalhadora e cidadã em igualdade de condições com o homem, objetivando”,
entre outras questões, “impedir a
veiculação de mensagens que atentem contra a dignidade da mulher, reforçando a
discriminação sexual ou racial.” Nesse
artigo reside, sem sombra de dúvida, a constitucionalidade do Projeto de Lei “antibaixaria”.
Aliás, ele vem com mais de vinte anos de
atraso para regulamentar o que reza nossa Constituição desde 1989, como de
resto ainda acontece com a maior parte de nossas conquistas nessa carta, que
ainda aguarda regulamentação.
Em
relação ao Art. 282, posso testemunhar que, já na década de 1980, ao propormos sua
inclusão na Constituição da Bahia, tínhamos em mente, não apenas o combate à constante
veiculação de anúncios em jornais, outdoors
e na mídia televisiva, que em muito desmerecem, objetificam e assaltam
moralmente a nós, mulheres, como também à cantigas que exemplificam, em suas
letras, o que se classifica como violência simbólica de gênero – tal qual em “...nega do cabelo duro... pega ela aí, pega ela
aí prá passar batom ... na boca e na bochecha”, música sexista e racista,
popular na época!
Na
verdade, uma de nossas maiores preocupações era (e ainda é) o enfrentamento à
violência de gênero contra as mulheres, particularmente a violência simbólica
de gênero, que se infiltra por toda a nossa cultura, legitimando os outros
tipos de violência. Por “violência de gênero”, refiro-me a toda e qualquer
forma de agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocional,
institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por base a organização social
dos sexos e que seja impetrada contra determinados indivíduos, explícita ou
implicitamente, devido à sua condição de sexo ou orientação sexual. Isso
implica dizer que tanto homens quanto mulheres, independente de sua preferência
sexual, podem ser alvos da violência de gênero. Contudo, em virtude da ordem de
gênero patriarcal, ‘machista’, dominante em nossa sociedade, são, porém, as
mulheres e, em menor número, os homossexuais, que se vêem mais comumente na
situação de objetos/vítimas desse tipo de violência.
Quando
falamos de violência de gênero contra mulheres, pensamos mais de imediato em
atos de violência física – agressões, espancamentos, estupros, assassinatos -- perpetrados,
geralmente, por seus companheiros, e que acabam estampados em manchetes nas
páginas policiais jornalísticas. Essa é, sem dúvida, a mais chocante e
revoltante forma de violência de gênero, posto que atenta diretamente contra a
vida de uma pessoa, não sendo raros os casos em que ela passa impune.
A
Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como “Lei Maria
da Penha”, trouxe um grande avanço no enfrentamento à violência de gênero
contra mulheres, vez que, além de criminalizar esse tipo de violência - que passava invisível na esfera doméstica e
familiar - também reconheceu outras
formas de violência, tais como a violência sexual, moral, psicológica, e
patrimonial, como igualmente puníveis por lei. Cabe lembrar, porém, que tanto as agressões
físicas, quanto essas outras formas de violência e sua impunidade, são
legitimadas pela ordem social de gênero que caracteriza a nossa sociedade, a
ordem de gênero patriarcal, ordem inscrita e perpetrada nas nossas instituições
sociais, nos nossos sistemas de crenças e valores e no nosso universo simbólico,
com ressonância nas relações interpessoais e na construção das nossas
identidades e subjetividades enquanto homens e mulheres.
De fato, a
violência de gênero se expressa com força nas nossas instituições sociais
(falamos então de violência institucional de gênero) e, de maneira mais sutil,
embora não menos constrangedora, na nossa vida cultural, nos atacando (ou mesmo
nos bombardeando) por todos os lados, sem que tenhamos plena consciência disso.
Diariamente, ouvimos piadinhas, canções, poemas, ou vemo-nos diante de contos,
novelas, comerciais, anúncios, ou mesmo livros didáticos (ditos científicos!),
de toda uma produção cultural que dissemina imagens e representações
degradantes, ou que, de uma forma ou de outra, nos diminuem enquanto mulheres.
Essas imagens acabam sendo interiorizadas por nós (até mesmo as feministas “de
carteirinha”), muitas vezes sem que nos demos conta disso. Elas contribuem
sobremaneira na construção de nossas identidades/subjetividades, diminuindo, inclusive,
nossa auto-estima.
Isso tudo se
constitui no que chamamos de violência simbólica de gênero, uma forma de
violência que é, indubitavelmente, uma das violências de gênero mais difíceis
de detectarmos, analisarmos e, por isso mesmo, combatermos. Talvez até mesmo porque o ‘bombardeio’ é tanto,
de todos os lados, que acabamos ficando anestesiadas, inertes, impassíveis,
incapazes de percebê-la, bem como o seu
poder destruidor. Na verdade, o mundo
simbólico aparece como um grande quebra-cabeças a ser decifrado, difícil de
abordar, vez que, como no caso das metáforas, ele se processa através de um
encadeamento e superposição de símbolos e seus significados, ou de associações,
transposições, oposições e deslocamentos.
Destrinchar esses processos é muitas vezes adentrar num labirinto,
correndo atrás de um novelo que torce, retorce, rola, enrola e dá nós, difíceis
de serem desatados. Por isso mesmo, a
violência simbólica é sutil, mascarada, disfarçada e, assim, bastante eficaz.
Certamente,
não é esse o caso da “nova poesia baiana”, tal qual expressa nas letras do
nosso cancioneiro popular contemporâneo. Ao contrário, não há nada de
dissimulado nessas cantigas. Nelas, a imagem da mulher, de todas nós mulheres,
é explicitamente aviltada, rebaixada, causando constrangimento naquelas que se
prezam. Senão vejamos:
Em
“Me Dá a Patinha”, por exemplo, a mulher
é abertamente chamada de “cadela”, porque está supostamente disponível para
todos:
O João já pegou
Manoel, pegou também
O Mateus engravidou,
tá esperando o seu nenem
Carlinhos, pegou de quatro
Marquinhos fez frango assado
José sem camisinha
Pego uma coceirinha
O nome del'é Marcela
Eu vou te dizer quem é ela
Eu disse
Ela, ela, ela é uma cadela
Ela,ela mais ela é prima de Isabela
Joga a patinha pra cima
One,Two,Three
Me dá, me dá patinha
Me dá sua cachorrinha
(sic)
Igualmente desrespeitosa em
relação às mulheres é a cantiga “Ela é Dog”, que segue a mesma linha (... estilo cachorra, ela fica de quatro, ela é dog, dog, dog, ....parede de costas),
assim como “Rala a Tcheca no Chão” (rala
a tcheca no chão, a tcheca no chão, a tcheca no chão, mamãe), sem esquecer
de “Na Boquinha da Garrafa”, onde se afirma que ...no samba ela gosta do rala, rala, me trocou pela garrafa, não agüentou
e foi ralar... vai ralando na boquinha da garrafa, sobe e desce na boquinha da
garrafa,
É na boca da garrafa...
Ressalto que não se trata somente do gosto deveras questionável desses
versos, mas, sobretudo, da incitação e legitimação da violência física contra
mulheres que eles expressam. Como nos
versos, ...se o homem é chiclete, mulher
é que nem Lata, um chuta, o outro cata...”, ou então, na já combatida
“Tapinha de Amor”:
Não era preciso chorar desse jeito
Menina bonita anjo encantador
Aquele tapinha que dei no seu rosto
Não foi por maldade foi prova de amor
A nossa briguinha foi de brincadeira
...
Não seja assim tolinha eu sei que tapinha de amor não dói
(sic)
Não custa
lembrar que foram mais de 30 anos de lutas dos movimentos feministas no país no
combate à violência de gênero contra mulheres, uma luta que logrou trazer a
elaboração e aprovação da Lei Maria da Penha em agosto de 2006. Essa lei cria
mecanismos para “coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a
mulher”, assim destacando, em seus Artigos 2º e 3º:
Art. 2o
Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda,
cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades
para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu
aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Art. 3o
Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos
direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à
moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à
liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
De
acordo com a Lei Maria da Penha, uma Lei Federal, e, como vimos, também de acordo com a Constituição da Bahia,
é dever do Estado combater a violência, assegurando às mulheres o direito ao
respeito e dignidade enquanto seres humanos. O Projeto de Lei apresentado pela
Dep. Luiza Maia vem regulamentar a intervenção do Estado nesse tocante, dispondo
sobre “a proibição do uso de recursos públicos para a contratação de artistas que,
em suas músicas, danças, ou coreografias desvalorizem, incentivem à violência
ou exponham as mulheres a situações de constrangimento.”
Ressalte-se
que não se trata aqui de cercear o direito de “livre expressão artística” de
ninguém, já devidamente consagrada na Constituição Federal. Não se trata de
fazer censura. Longe disso! Mas é necessário que o Estado não seja
conivente com mensagens que façam a apologia da violência de gênero contra
mulheres, utilizando verbas públicas – o dinheiro nosso e do nosso povo – para
aviltar a nossa imagem! Fazê-lo, ou
seja, contratar com dinheiro público quem assim procede é legitimar a violência
de gênero contra as mulheres. É, pois,
atentar contra a nossa carta magna,
cabendo, pois, de nossa parte, a impetração de ações cíveis junto ao Ministério
Público.
Espera-se,
outrossim, que o Projeto de Lei em questão também tenha um papel pedagógico. Que ele venha a conscientizar mulheres e
homens desta Bahia (e por que não, do nosso Brasil) da necessidade de combate à
violência contra mulheres, hoje expressa, de forma tão vulgar e grosseira, no
nosso cancioneiro popular. Creio que é
isso que minhas combativas companheiras do Fórum de Mulheres de Salvador, que
comigo lutaram pelo avanço das nossas conquistas nos idos dos anos 1980, tinham
também em mente quando sonhávamos com uma Bahia sem sexismo, sem racismo, e sem
violência!
<!--[endif]-->
<!--[if !supportFootnotes]-->[1]<!--[endif]--> Uma primeira
versão deste ensaio foi apresentada como contribuição aos debates sobre o
Projeto de Lei No.19.137/2011, na Comissão da Mulher da Assembléia Legislativa
da Bahia, em 24/08/2011.