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Silvana Salles
"No passado, quem chegava à delegacia eram mulheres mais velhas, que apanhavam havia 20 anos dos maridos e tinham braços e pernas quebrados. Hoje, chegam jovens que vão morar com os rapazes muito cedo, independente de raça e classe social", conta a delegada Celi Paulino Carlota, responsável pela 1º Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo, localizada no centro da capital paulista.
A delegacia no centro de São Paulo foi criada em 1985. Celi dirige a unidade há dois anos, mas antes trabalhou por 16 anos na Delegacia da Mulher de Pirituba, zona norte de São Paulo. Ela acompanhou a criação da lei Maria da Penha (que ampliou o rigor na punição à violência contra a mulher) e as mudanças que vieram junto após a sanção, no dia 7 de agosto de 2006.
"Quando a lei começou a vigorar, cresceu a procura por atendimento porque aumentou a divulgação. Depois, quando fizeram uma campanha que dizia que quem bate em mulher vai preso, caiu. Porque, na verdade, as mulheres não querem que os homens sejam presos, elas só querem que eles parem de machucá-las. Atualmente, a procura voltou a aumentar", diz a delegada. No ano passado, a Secretaria de Segurança Pública paulista registrou 91.128 ocorrências nas Delegacias de Defesa da Mulher, a maior parte de lesões corporais e ameaças.
Criada para proteger as mulheres que são agredidas por pessoas com quem possuem uma forte relação afetiva -maridos, pais, namorados, irmãos-, a lei Maria da Penha aumentou a pena de lesão corporal leve em casos de violência doméstica para até três anos. Também tirou a necessidade de a vítima manter a queixa contra o agressor durante o julgamento, criou juizados especiais e diminuiu o tempo entre a investigação policial e a decisão da Justiça.
Tudo isso para permitir que os agressores sejam afastados das vítimas antes de as agressões se agravarem ainda mais e oferecer garantias suficientes para que estas mulheres rompam com a violência doméstica.
"É muito difícil para estas mulheres denunciar os agressores", explica o psicólogo Cláudio Picazzo, especialista em violência doméstica e abuso sexual infantil. "E se ele te agredir novamente? E se a agressão for pior porque você o denunciou?", questiona. "Além disso, as pessoas que sofrem esse tipo de violência têm um vínculo de amor com o agressor. Às vezes, fantasiam que o problema é o álcool, que quando está sóbrio o cara é um anjo."
"A violência doméstica é cíclica. A mulher passa por ciclos de violência e depois de convivência pacífica com o marido. Por isso, ela tem dificuldade em levar adiante o processo contra o agressor", explica Carolina Brambila Bega, coordenadora auxiliar do Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.
Ela estima que os defensores públicos paulistas atendam por mês cerca de 300 pessoas que procuram orientações sobre o assunto. Algumas procuram informações sobre o funcionamento da lei, outras são orientadas a levar os documentos necessários para dar início a uma ação. "Acontece muito de mulheres passarem no primeiro atendimento, passarem a documentação necessária para abrir o processo e depois não retornarem mais", lamenta Carolina.
Além da procura às delegacias especializadas e à defensoria pública, a Lei Maria da Penha faz crescer anualmente a busca por informações pelo serviço telefônico da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, ligada à Presidência da República. Entre janeiro e junho deste ano, o serviço registrou 161.774 atendimentos -um aumento de 32,36% em relação aos 122.222 do mesmo período de 2008. Em 2007, foram 58.417 atendimentos no primeiro semestre.
Em números absolutos, o Estado de São Paulo lidera a procura ao serviço, seguido pelo Rio de Janeiro e por Minas Gerais. A maior parte dos relatos é de violências cometidas pelos companheiros das vítimas. A principal reclamação é de violência física, mas também há casos de violência psicológica, moral, sexual e cárcere privado.
Também foram criados 28 Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no país, mas não em todos os Estados, segundo Pedro Ferreira, coordenador da central de atendimento à mulher da secretaria espacial. Mais 38 varas da Justiça funcionam de forma adaptada. O alcance ainda é restrito e, enquanto não são criados novos juizados, as varas criminais são responsáveis pelos processos de violência doméstica contra as mulheres.
"O problema é que a vara criminal só tem competência para julgar o crime, mas esses casos envolvem questões cíveis também. O juizado especializado trata dos dois. Sem ele, a mulher não consegue resolver tudo de uma vez, tem de procurar uma vara cível depois", explica Ferreira. As varas cíveis podem arbitrar separações e divórcios e definir a guarda dos filhos e a pensão alimentícia, por exemplo.
Apoio à vítima
Quem trabalha com as vítimas diz que a violência doméstica não se restringe a classe social, mas que a necessidade de serviços de apoio pode variar.
"A vítima pode ser uma dona de casa sem recursos ou uma profissional de classe média alta, com curso superior. A diferença é que as donas de casa acabam dependendo mais da rede de apoio", diz Ana Galati, coordedora geral de suas casas-abrigo administradas pelo Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde, de São Paulo.
Segundo ela, as mulheres que vão para os abrigos são as mais vulneráveis, que em geral correm risco de morte ou de sofrer violência ainda mais forte ao voltar para suas casas. Elas chegam aos locais em sigilo -os endereços dos locais onde são acomodadas não são divulgados nem às famílias e, caso precisem entrar em contato com os parentes, usam um telefone que não pode ser rastreado. Quando têm filhos, levam eles junto. A avaliação da necessidade de ir para um abrigo é feito por psicólogos e assistentes sociais nos centros de referências à mulher, que oferecem também assistência jurídica e capacitação profissional.
Avanços culturais
Lideranças feministas avaliam que a Lei Maria da Penha passou a ser "muito conhecida e referenciada" dentro da sociedade brasileira, como diz Leila Linhares Barsted, advogada e coordenadora executiva da ONG Cepia, com sede no Rio de Janeiro. No entanto, identificam focos de resistência a existência de legislação específica para combater a violência doméstica contra a mulher.
Myllena Calasans, advogada e assessora técnica do CFemea (Centro Feminista de Estudos e Assessoria) diz que a lei "tem encontrado resistência no sistema de Justiça". "Há decisões conflitantes no Judiciário sobre a constitucionalidade da lei, aplicação dos dispositivos em favor de homens, demonização. Tem quem diga que a lei fere o princípio da igualdade de gêneros, mas ela veio para fazer dessa igualdade uma realidade."
No mês passado, um juiz do Rio Grande do Sul usou uma analogia para determinar medidas de proteção a um homem que dizia que sua ex-mulher "o perturbava". No ano passado, houve um caso semelhante no Mato Grosso.
Para Leila Barsted, a aplicação é errada. "Acho que o juiz [que aplica a Maria da Penha para proteger homens de agressões] desvirtua o sentido da lei. A violência contra a mulher é um fenômeno social, ela é cometida pelo fato de a vítima ser mulher", diz.
"Uma mulher que é vítima de violência doméstica pode demorar 15 ou 20 anos para romper o ciclo. Em uma relação dessas, ela não está no mesmo patamar de igualdade que homem", opina Myllena.
As duas ativistas dizem acreditar que o principal entrave para o combate à violência contra as mulheres é que muita gente ainda acredita em relações hierárquicas entre homem e mulher, principalmente quando colocam o homem como o provedor.
Retirado de UOL Notícias